sábado, 16 de junho de 2012

Digitalis e quercus em harmonia no meu jardim


Criatividade, atualização constante, inovação, atividade, marketing surpreendente, trabalho colaborativo, satisfação do público, resultados, evidências são chamadas a que qualquer profissional - que deseje o ver o serviço florescer e não murchar – tem que responder. Um desafio radical! O professor bibliotecário não é exceção, responde, igualmente, à medida do seu público, da comunidade que serve. No seu serviço florescem, agora espécies atraentes, novas, pequenas, leves, portáteis,  digitais, do meio de uma vegetação densa, de raízes profundas. Uma cleção, qual jardim cheio de digitalis purpurea rosa choque e dos mais largos troncos de quercus suber. Se a coleção for vista como um jardim, ela deverá ser colorida, renovada.
Preservação parece já não ser tanto a palavra de ordem; abriram-se alas à atualização e à mediação do digital. No entanto, o sobreiro velho continua a dar cortiça... penso eu!
Um périplo pelos paradigmas de Ciência da Informação ajuda a responder ao Como? Como chegámos aqui? e ao Que fazer agora?. Num artigo de 2010 que se caracteriza pela busca de uma definição de mediação em diferentes dicionários, na procura de a ajustar à especificidade da Ciência da Informação, o autor – Armando Malheiro da Silva - evoca a obra O Nome da Rosa, de Umberto Eco, que retrata um modelo de biblioteca negativo, custodial,  censurador, antagónico à liberdade de acesso. Por oposição, refere o Manifesto da UNESCO, que idealiza bibliotecas alegres, iluminadas, em que o acesso à informação é facilitado, segundo um "paradigma pós-custodial, informacional e científico" (Silva, 2010, p. 13) que marca a era do conhecimento. Nesta, a informação virtualizada, ubíqua e vasta requer, sobretudo em contextos protegidos, científicos, educacionais, uma, digamos, task force mediadora.
Os serviços de informação multiplicaram-se e complexificaram-se até se instalarem na internet e, aqui, a função mediadora de comunicação e institucional (…) não desapareceram, (…) mas podem transformar-se e coexistir com um emergente novo tipo de mediação – deslocalizada ou dispersa (…)
(Silva, 2010: 24-25)

A constatação da necessidade da “função mediadora”, mesmo que “deslocalizada”, reforça, no meu entender, o papel dos profissionais de informação, tais como os professores bibliotecários.
Antes de tentarmos responder à dúvida se o digital dizimará o físico, se as coleções existirão apenas no espaço virtual, conforme se debate hoje no globo – em particular, refira-se os artigos de Pierre Chorreu e Célin Ménéghin (2010) -, eu creio que devemos decidir que noção temos de informação. Uma estação obrigatória parece-me ser Anthony Wilden, que nos mostra uma paisagem mista: informação como um conceito “estritamente técnico e tecnológico (…) a quantidade mensurável em bit (binary digit) (…). O segundo sentido é, porém, sempre qualitativo (…). A informação apresenta-se-nos em estruturas, formas, modelos, figuras, configurações, em ideias e ídolos; em índices, imagens e ícones; (…) em sinais, signos, (…) entoações (…), presenças e ausências (…)” (Wilden, apud Silva e Ribeiro, 2002: pp. 17-18). Ou seja, uma pluralidade de manifestações.
Assim sendo, parece-me que a informação sempre terá diversos suportes e sempre assim viverá, na diversidade, porque o mercado dela depende (diferentes dispositivos, diferentes ofertas, atrações, diferentes apelos e… vendas) e também porque o ser humano dela necessita – não é verdade que somos todos diferentes mas todos iguais? De facto, todos somos iguais em direito de acesso à informação, mas todos somos diferentes nos gostos e necessidades. 
Ainda assim, apesar da variedade de suportes, é lógico e sensato que se acompanhe a evolução dos tempos e se cuide de disponibilizar, o mais possível digitalmente, todas as fontes de informação, o que também é uma forma de preservar o antigo e o físico. Naturalmente que se espera que as bibliotecas escolares, as escolas, as nações, acompanhem a evolução dos tempos e dos modos e dispositivos e, bem, assim, as pessoas mais jovens, com os seus novos hábitos, interesses e conhecimentos.
Compreende-se, portanto, a indignação de Pierre Chorreu (2010) para com França, cujo sistema escolar, um dos pioneiros da educação das massas, não atualiza, na perspetiva do autor, o seu programa em matéria de educação para a inclusão digital: “Il paraît étonnant qu’un pays comme la France, dont le système scolaire, un des piliers de la République, a inscrit comme objectif de base de savoir lire, écrire et compter, n’ait pas mis à jour son programme, et laisse l’immense majorité de ses élèves en sortir sans maîtriser une compétence pratique dont on ne peut se passer dans le monde contemporain.” (Chorreu, 2010).
Alguém diga à França para ler a Itália! Atente-se no mesmo senhor a que aludimos há pouco, Umberto Eco. Se ele se referia ao modelo negativo de biblioteca em O Nome da Rosa, não se ficou por aí e fez espalhar a sua ideia otimista de biblioteca, na sua comunicação/livro A Biblioteca (1987): “se a biblioteca é, como pretende Borges, um modelo do Universo, tentemos transformá-la num universo à medida do homem (...) com a possibilidade de dois estudantes (...) consumarem parte do seu flirt na biblioteca, (…) isto é, uma biblioteca onde apeteça ir, e que se vá transformando gradualmente numa grande máquina de tempos livres” (Eco, 1987: 54-44).
Neste contexto, mais um debate surge na comunidade global, debate a que a França também não foi imune: Tempos livres na biblioteca? Videojogos? Na biblioteca?. Para Célin Ménéghin, num primeiro contacto, a combinação destas duas coisas: biblioteca e videojogos, parece patética, mas a autora explica como a aceitação vai, paulatinamente, chegando a profissionais e serviços: ”«jeu vidéo » et « bibliothèque », peut sembler antinomique, voire loufoque au premier abord, tant les deux mondes auxquels ils sont associés paraissent éloignés. Pourtant, les professionnels des bibliothèques sont de plus en plus nombreux à s’intéresser au jeu vidéo comme support à intégrer dans les collections.” (Ménéghin, 2010, p. 56). Se, acima, eu caricaturava as perguntas, saiba-se: o que eu queria seriamente questionar era: videojogos nas biblioteca, por que não?
Uma coleção, a meu ver, é uma coleção, um coletivo. Deve ser plural, rica. A mediação também é um conceito que defendo, mas com limites. Mediação não deve aproximar-se de paternalismo, muito menos de censura. Recordem-se: acima vimos que o paradigma custodial já lá vai (e não queremos mais regimes totalitários, ou...?).

Conheço BE diversas, servidoras de diferentes valências de escolaridade e de comunidades socioeconómicas bem distintas. Isto leva-me a defender uma política generalista que chegue a diferentes pessoas e não apenas a uma minoria. Se numas bibliotecas os videojogos só estorvariam, noutras poderiam ser a semente para   o nascimento de uma geração de leitores. Trabalho, há 2 anos, numa BE de uma escola secundária pura. A nossa população é de aprox. 660 alunos. A BE está muitas vezes lotada ou quase. Numa observação de frequência que realizei de março a maio, contabilizei uma média de 23 alunos por hora, com os picos (em que esse número aumenta para uma média de 31) nos intervalos e no período das 12 às 15 horas. A BE só tem esses lugares? Claro que não. Ainda há pouco dei uma formação e consegui lá sentar 101 pessoas. Mas isso é com o mobiliário encostado e a área cheia de cadeiras. Quando temos tudo "montado", i.e. zona de produção de trabalhos e de leitura/estudo em grupo, z. de leitura informal, z. de leitura individual, z. de recursos informáticos, z. de audiovisuais e lazer,... - a área fica completa e 30 vozes já estragam o ambiente; torna-se difícil a concentração, fundamental como penso que defendes (e eu também, evidente/). A BE tem tido + frequência, mas as "caras" são sempre as mesmas! Há um grupo enorme de alunos que passam o tempo livre quase todo na praça em frente à escola e no centro comercial (a 2 passos dali). Dos que + frequentam BE, muitos têm média de 18 (uns poucos têm média de 19!). Feliz? Claro. Mas... e os outros? E se os videojogos lhes ensinarem alguma coisa (como estratégia, socialozação, inglês)? E a compulsividade, e a parcimónia para a evitar, e...? E eu pergunto: e a mediação? Penso que é aí que reside o busílis.
Se exigirmos da BE aquele comportamento sepulcral, então poderemos estar a servir sempre aquele grupo privilegiado dos que trazem hábitos de trabalho e conhecimento de fontes de informação. E os que carecem disso tudo? Por que não "agarrá-los"?
Se escolas e bibliotecas são espaços de democracia e se a oferta ainda se centra demasiado em recursos físicos impressos, pouco maleáveis em termos físicos, de conteúdo e de finalidade, então podem tornar-se obsoletas e pouco atrativas. Uma solução poderia passar pela digitalização de parte do acervo, dentro dos limites legais de respeito pela propriedade intelectual. Uma biblioteca digital dentro de uma biblioteca escolar, uma ludoteca também digital e uma máquina de café, por que não? Enfim: alegria, bem estar e muitos utilizadores, creio, farão a harmonia do jardim do futuro, onde caberão miosótis, dedaleiras e… sobreiros velhos, com tanto que cada um tem para oferecer: mais flores, cortiça, cheiros, sensações… Em cada canto (do jardim e da biblioteca) um encanto.


Referências

Chorreu, Pierre (2010). Collections numériques colletions physiques: quelle articulation? BBF, T.55, nº 3, 2010. Recuperado em 15 de junho de 2012 de http://bbf.enssib.fr/consulter/bbf-2010-03-0018-003

Eco, Umberto (1987). A Biblioteca. Lisboa: Difel.

Ménéghin, Célin (2010). Des jeux vidéo à la bibliothèque. BBF, n° 3, 2010, pp. 56-60. Recuperado em 15 de junho de 2012 de http://bbf.enssib.fr/consulter/bbf-2010-03-0056-010

Silva, Armando Malheiro da e Fernanda Ribeiro (2002). Das ciências documentais à ciência da informação: Ensaio epistemológico para um novo modelo curricular. Porto, Edições Afrontamento. ISBN: 972-36-0622-4

Silva, A. M. (2010). “Mediação e mediadores em Ciência da Informação”. PRISMA.COM, n.º 9 2010, ISSN: 1646 – 3153. P. 1-37. Recuperado em 15 de junho de 2012 de http://prisma.cetac.up.pt/premio_cetaccontecsi_edicao_n9_dezembro_de_2009/da_mediacao_custodial_a_mediac.html